Financiamento: é possível ampliar a Educação Infantil sem destruir a pós-graduação
14 de novembro de 2018
Por Tânia Pescarini
Em época de financiamento escasso, é preciso redirecionar recursos destinados à educação e priorizar a Educação Básica. O discurso tem seu fundo de verdade, mas é preciso cautela para não cair na armadilha da demagogia. Destruir a pesquisa universitária nacional não é a solução para a Educação Infantil.
Em um país em que 44% da população não lê e 30% nunca comprou um livro na vida, deixar de investir em pesquisa e conhecimento de ponta e direcionar nossos esforços para a Educação Básica parece ser uma escolha lógica. É esse o discurso de grupos ligados, principalmente, a grandes organizações internacionais, como o Banco Mundial; e a narrativa se sustenta no péssimo desempenho do Brasil em avaliações internacionais e no Saeb. Mas o que a situação descrita nos mostra é justamente o contrário: em uma sociedade em que se lê e escreve pouco no trabalho e onde a figura do intelectual é dissociada da do trabalhador, desinvestir na produção do conhecimento não ajuda em nada a Educação Básica. Ao contrário, retira de crianças pequenas a oportunidade de conviver em um ambiente intelectualmente estimulante, enriquecido pela colaboração entre escola e universidade pública: um ambiente ao qual não teria acesso de outra forma. É preciso deixar claro que, no caso do Brasil, assim como o resto do mundo, a produção de conhecimento científico e intelectual é responsabilidade das universidades. No Brasil, principalmente das públicas.
Educação superior: o Brasil não consome tanto quanto se pensa
O primeiro passo para desmascarar o populismo de quem afirma que basta cortar bolsas de mestrado e doutorado para sobrar dinheiro para as creches é quebrar o mito de que o Brasil gasta muito com Ensino Superior. Isso não é verdade, pois “o Brasil gasta menos com Ensino Superior do que a média dos países da OCDE”, afirma o professor e pesquisador da Universidade de São Paulo, José Marcelino Resende, que estuda mecanismos de financiamento da educação no Brasil. O gasto por aluno nas universidades federais, principal foco de produção de pesquisas, é de fato alto, mas como há poucas vagas, o gasto total não impacta tanto o investimento em Educação Básica. “Mesmo que se acabasse com todas as bolsas (de mestrado e doutorado) isso não aumentaria nem em 1% o investimento em Educação Infantil”, afirma Marcelino. “Já acabar completamente com as universidades federais daria um incremento de apenas 15% no financiamento de toda a Educação Básica”, argumenta Marcelino. Para se ter uma ideia de quão pouco sentido faz uma ação como essa, o valor mensal investido pelo Fundeb em um aluno em São Paulo variou entre 240 e 390 reais. Já a mensalidade em uma escola particular, na mesma cidade, variou entre 1.200 e 3.390 reais mensais. Um aumento de 15% no valor dos repasses federais para alunos de escolas públicas em São Paulo, portanto, dificilmente contribuiria para reduzir as desigualdades entre rede pública e privada. Já a contrapartida – fim das universidades federais – geraria uma fuga de cérebros sem precedentes, o que provavelmente aleijaria a ciência por décadas.
Aumento de repasses não encontra barreiras legais
Marcelino Resende lembra que o complemento da União ao Fundeb é a única exceção ao congelamento de gastos imposto pela Emenda Constitucional 95/Teto dos Gastos. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) é um mecanismo essencial para financiar a educação em estados e municípios onde a arrecadação é menor. Ou seja, é um instrumento de redução das desigualdades. Já o QAQi – Custo Aluno-Qualidade Inicial – é um instrumento muito útil para medir o que de fato se investe na educação, pois esse indicador olha para o investimento por aluno e corrige distorções inerentes à análises que somente levam em consideração o gasto como percentual do Produto Interno Bruto em um país como o Brasil, que conta com uma grande população jovem. Hoje, o repasse federal ao Fundeb não chega nem perto do custo aluno com uma qualidade anual ideal. “Basta vontade política para implementar o QAQi”, afirma José Marcelino. “A união pode aumentar sua participação no Fundeb sem transgredir a Emenda 95”, diz. Atualmente, segundo ele, o repasse da união via Fundeb para creches é muito baixo.
Hoje, a principal fonte de receita para o Fundeb é o ICMS, um imposto que advém do consumo. Impostos sobre consumo significam encargos que impactam proporcionalmente mais a população de baixa e média renda. Para aumentar a arrecadação do Fundeb, portanto, é preciso implementar políticas de crescimento econômico concomitante à distribuição de renda. As creches no Brasil são realmente subfinanciadas. Além de faltarem vagas, o valor gasto anualmente por aluno está muito aquém do recomendado. Enquanto o repasse do Fundeb, em 2015, para creches em período integral ficou em cerca de 3.350 reais (por aluno/ano), a recomendação do QAQi ultrapassa os 10.000 reais (estimativa: aluno/ano). Professores e entidades se queixam de que o país passa por uma crise da primeira infância: crianças que crescem sem o estímulo adequado têm menos chances de se tornar bons alunos no Ensino Fundamental e Médio. Mas as reformas necessárias para garantir uma infância digna para todos ultrapassam os muros da escola e não há solução simples para esse problema complexo.