Hip hop: da cultura de rua às Olimpíadas de Paris 2024
24 de março de 2025
Descubra com Mildred Sotero, autora de livros didáticos pela Editora do Brasil e professora de Educação Física, a trajetória e a ancestralidade do hip hop, a voz das comunidades negras e periféricas
As danças acompanham o ser humano desde a antiguidade até a contemporaneidade em inúmeras culturas. Diferentemente de outras manifestações artístico-corporais, a dança utiliza movimentos corporais como forma e instrumento de expressão. Em sequências coreográficas, utiliza-se também outros elementos, como música e objetos, mas nem sempre são necessários.
Segundo Mildred Sotero, professora e autora do livro didático Interação Educação Física inscrito no PNLD 2026 pela Editora do Brasil, além de mestra em Pedagogia do Movimento Humano (USP), decorar e estudar as diversas danças é uma forma abrangente de conhecer melhor o movimento humano e a cultura que lhe deu suporte. Os movimentos de dança são criados e feitos de forma livre, mas com base num enredo, história, narrativa, cultura ou contexto, em produções criativas e desafiadoras para praticantes e espectadores.
As danças urbanas são caracterizadas por serem manifestações que surgem nas ruas das cidades, como forma de protesto/denúncia e, portanto, como modo de expressão e vivência cultural.
O surgimento do hip hop: Bronx, anos 70
Para que donos de edifícios no bairro, então decadente, do Bronx recebessem dinheiro do seguro (já que não conseguiam comercializar os imóveis como queriam), muitos edifícios foram queimados a mando dos proprietários. Sem escolas, hospitais e áreas de lazer, a região já degradada foi abandonada pelo poder público e dominada pela criminalidade.
Assim como ocorreu naquela época, ainda hoje é possível afirmar que onde o poder público se torna ausente, grupos fora da lei encontram facilidade para dominar. Tal abandono propiciou que gangues locais e dos arredores dominassem o subúrbio novaiorquino. Essas gangues eram formadas conforme a etnia (latinos, negros, italianos, porto e costa-riquenhos), sendo inimigas umas das outras. Muitas gangues deram, para alguns, proteção, mas, para outros, morte. E mesmo a proteção tinha preço caro…
Nesse ambiente, alguns grupos de ativistas sociais começaram a combater tais gangues, com a promoção de ações sociais coletivas, como a retirada de entulhos das ruas e doações de roupas e alimentos para a comunidade. Após um tempo, Afrika Bambaataa, DJ e líder renomado do Bronx, propõe um tratado de paz entre as gangues, para evitar a morte crescente entre a juventude negra. Nesse tratado, a disputa pelo poder seria por meio de batalhas de música e dança, entre outros elementos culturais, e não mais pela violência física.
Elementos do hip hop
Nos bairros havia festas ao som de DJs (disc jóqueis), e nelas eram disputadas batalhas de breaking dance, em que um dançarino iniciava uma sequência de movimentos criados por ele e, a seguir, o adversário deveria fazer a mesma sequência e aumentá-la, tentando superar o oponente. O resultado era decidido por jurados de batalha que se baseavam também no julgamento dos espectadores, expresso por palmas, agitação e gritos.
Origem do rap
Apesar de fazer parte do movimento hip hop desde o início, o rap não teve origem nos Estados Unidos, como muitos pensam, mas, sim, na Jamaica. Foi na década de 1960, quando as pessoas usavam sistemas de som nas ruas para animar bailes nos guetos da capital Kingston (Jamaica). Nesses bailes, os mestres de cerimônia falavam ou cantavam no ritmo de uma música instrumental, sobre reivindicações sociais e financeiras ou assuntos como violência e a situação política do país, principalmente a partir da visão e da percepção do jovem periférico. Em 1970, devido a uma crise econômica e social na Jamaica, muitos jovens jamaicanos imigraram para os Estados Unidos. Foi o caso de Clive Campbell, que depois ficou conhecido como Kool Herc, criador das bases do rap.
Kool Herc produziu falas rimadas durante as suas apresentações como DJ nas festas de rua que promovia, seguindo o modelo jamaicano. Por isso, muitos consideram Kool Herc o “pai” do hip hop.
A expansão do hip hop e a influência no Brasil
O início do movimento hip hop é frequentemente associado ao DJ Kool Herc, que tocava dois discos ao mesmo tempo, para prolongar as batidas rítmicas (breaks) das músicas. Essa técnica se tornou central na forma de reproduzir músicas de discos e ainda hoje é largamente utilizada por DJs de todo o mundo.
Com o desenvolvimento da função e do perfil de DJ, surgiram os MCs (mestres de cerimônia), que acompanham os DJs animando o público e, eventualmente, rimando sobre as batidas.
O breakdance ou breaking dance é a dança associada ao hip hop, em que se criam movimentos e coreografias curtas. Desde o início do movimento hip hop, a dança é uma forma de afirmação e resistência étnico-culturais, assim como o grafite (desenhos em muros), que representa as comunidades, artistas e ideais do hip hop. Confundido com a pichação, o grafite é uma forma de ocupar e reivindicar espaços públicos para a arte periférica, como também uma forma de se fazerem ser vistos numa sociedade que, muitas vezes, marginaliza a população negra e periférica, junto com suas produções.
O hip hop chegou no Brasil no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, influenciado pela crescente popularidade do movimento nos Estados Unidos e disseminado, principalmente, por meio do rap (estilo musical próprio do movimento hip hop) e de filmes e programas de TV que retratavam o estilo de vida suburbano novaiorquino. Nos anos 1980, além de África Bambaata e Kool Herc, artistas e grupos como Grandmaster Flash e Run-D.M.C. misturaram rap com batidas de rock e pop, mas foi nos anos 1990 que o hip hop ganhou força, especialmente em São Paulo, impulsionado por grupos como Racionais MC’s e crews (equipes) de danças que ocupavam o Largo São Bento, no centro de São Paulo, aos fins de semana.
Temas como o cotidiano negro e periférico das grandes metrópoles da região sudeste eram os enredos das letras das músicas. Não por coincidência, questões sobre racismo, desigualdade social e violência eram cantadas em forma de protesto e de resistência negra cultural.
A partir dos anos 2000, o hip hop consolidou-se como uma das culturas mais influentes e globalizadas do mundo, quando também se fundiu com outros gêneros musicais brasileiros, como samba e MPB. Atualmente, o hip hop no Brasil é um dos gêneros mais difundidos no mundo. Sua influência na moda e nas artes (música e dança, principalmente) é visível a olhos nus. DJs, rappers, grafiteiros e dançarinos brasileiros do hip hop ganharam reconhecimento nacional e internacional.
Seu ativismo social está em trechos de letras de rap que estão em questões dos principais vestibulares do país, assim como gestuais de break dance (dança de estilo próprio do movimento hip hop) podem ser vistos no corpo de bailarinos das principais companhias de danças do mundo. Assim, o hip hop foi se tornando temática recorrente em debates sobre resistência e diversidade social, racial e cultural, como também no universo esportivo.
Ancestralidade e conexões culturais
Os elementos das bases ancestrais que inspiraram o surgimento do movimento hip hop foram constituídos de influências culturais, movimentos socioculturais, musicais e artísticos vindos de povos africanos, afro-americanos, latinos e caribenhos.
Os gêneros musicais afro-americanos como o Blues e o Jazz foram fundamentais na construção da musicalidade no hip hop. Além de inspirarem a improvisação, assim como o rap, esses gêneros incorporaram temas sociais e políticos e, assim, influenciaram diretamente o desenvolvimento do estilo de rimar dos MCs. As tradições de poesia falada já existiam nos Estados Unidos desde os anos 1960. Poetas e ativistas, como os Panteras Negras, usaram a poesia para denunciar injustiças sociais, similar ao que há no rap.
O contador de histórias e guardião das narrativas ancestrais africanas é o Griot. Tradicional na África Ocidental, ele é considerado uma das influências ancestrais do hip hop devido ao fato de usar narrativas orais para transmitir a história e as tradições da sua comunidade, de maneira similar ao que fazem os MCs (rappers). O Griot conta suas histórias também em praças e nas ruas, ambiente próprio do início do movimento hip hop.
Também os imigrantes jamaicanos trouxeram para o Bronx, especialmente por meio de figuras como DJ Kool Herc, a tradição de fazer festas de rua com grandes sistemas de som. Nessas festas, um orador discursava, tendo como pano de fundo uma batida musical sobre a qual o orador ritmava sua fala. Esse pode ter sido o início dos MCs (cantores de rap). Artistas como James Brown, que usavam batidas fortes e vocais rítmicos no Funk, foram influências na batida contagiante que os DJs pioneiros, como Kool Herc e Grandmaster Flash, adaptaram.
Como influência brasileira no movimento hip hop que se concretizou no Brasil, a capoeira certamente contribui com os movimentos acrobáticos dos b-boys e b-girls. Além da capoeira, artes marciais asiáticas também influenciaram as danças de rua que deram origem ao break dance. Esses estilos trouxeram, além de mais acrobacias, o posicionamento dos dançarinos em círculo.
Breaking nas Olimpíadas: um reconhecimento histórico
A inclusão do break dance nos Jogos Olímpicos foi fruto de um crescente e resiliente processo de tentativa de valorização da cultura urbana periférica em cenários e palcos culturalmente valorizados em cenários internacionais. Programas de televisão e videoclipes ajudaram a consolidar o break dance como um dos símbolos do movimento hip hop, que se espalhou por países como França, Alemanha, Japão, Coreia e Espanha, além do Brasil.
Nos anos 1990, o break dance foi se tornando uma atividade competitiva. Surgiram competições que popularizaram ainda mais a dança praticada por B-boys e B-girls de todo o mundo, mostrando cada vez mais um gestual artístico e de alta habilidade.
O avanço para o reconhecimento do break dance como esporte começou em 2014, quando foi incluído nos Jogos Olímpicos da Juventude em Buenos Aires, Argentina, e permaneceu até 2018.
Em 2020, o Comitê Olímpico Internacional (COI) anunciou oficialmente a inclusão do break dance como modalidade nos Jogos Olímpicos de Paris 2024. A decisão reflete a intenção do COI de atrair um público jovem e diversificar o programa olímpico com esportes de rua e cultura urbana. Na competição olímpica, os dançarinos foram avaliados por uma banca de juízes de diferentes nacionalidades, que utilizaram como critérios a técnica, criatividade, performance (grau de dificuldade na execução da sequência coreográfica) e variedade dos movimentos.
O hip hop nas escolas: cultura e educação
Para Mildred, o hip hop nas escolas tem se mostrado uma ferramenta poderosa para discutir temas como cidadania, diversidade e resistência cultural. Iniciativas educacionais vêm explorando o movimento como um meio de diálogo sobre a história e as experiências da juventude periférica.
Dica: hip hop nos livros
Cristiane Dias, em seu livro intitulado “A Pedagogia Hip-Hop: Consciência, Resistência e Saberes em Luta”, aborda a história do hip hop em uma narrativa envolvente e analítica. Ela destaca as raízes desse movimento sociocultural nos anos 1970, no Bronx, em Nova Iorque, além de contextualizar a evolução dos quatro pilares fundamentais do hip hop – o DJ, o rap, o break dance e o grafite –, enfatizando a influência desses elementos artístico-culturais na criação de uma identidade negra-jovem-periférica em São Paulo.
Além disso, Cristiane também analisa o percurso sociopolítico do hip hop, ressaltando como ele se transformou de uma subcultura urbana para um fenômeno mundial com impacto na discussão de pautas da juventude e da cultura urbana atual.
Sobre
Mildred Sotero é professora e autora de livros didáticos de Educação Física pela Editora do Brasil, mestra em Pedagogia do Movimento Humano (USP), dançarina, coreógrafa e atuante em pós-graduação e cursos de formação continuada na rede pública e particular de São Paulo.